segunda-feira, 16 de março de 2015

Delírio de Hortaliça


Este texto não é sobre música. É sobre hortaliça. Sobre a ousadia de conceber um número de variedades com hortaliça, de cantá-la e elevá-la em hino. Das salvas com que o público, pleno de alegria, recebe a cenoura, a maçaroca e a melancia nos degraus de prata que se esfumam na ribalta. A alegria com que o público apanha as folhas de repolho como numa Babilónia em que se atirassem moedas de ouro. Mas não é o metal estéril. É repolho que aconchega a fome, madrasta sombra que atormenta um país pobre. Apregoa-se que o teatro é o espelho da vida, do fado da vida, da puta da vida. Mas na Lisboa de noventas, onde se canta o repolho fabuloso, a patrioticíssima couve e a Bruxelas prometida, a vida era um sublime folie-brejeiro doce número de revista.
Surge a Europa que anuncia: A toda a Nação, dedicamos este número – fresco, digestivo e patriótico: Um grande bacanal das Hortaliças de Portugal! Esta não é a Europa chocha como a de hoje. É uma efígie gloriosa do sonho comunitário, livre do acrónimo tenebroso da PAC, ignorante do PEC, que apresenta no palco os trunfos de cada cultura, seja Goethe ou sejam grelos, porque há tanta sapiência humana no Werther como nas migas com broa. A mãe ideal sabia isso. A bênção dela à nossa hortaliça foi o que nos embalou pelos anos noventa fora, os últimos da inocência.
Começa o desfile. Descem quatro delgadas bailarinas, as flores do Lá Féria: Nós somos as alfaces, as alfaces bem verdinhas. Por sermos de Lisboa até nos chamam alfacinha. É verdade que Lisboa foi a capital do Império, mas lembrem-se que se não fossem as saloias de Benfica não haveria sopa quentinha e boa nas mesas de Alvalade; se não fossem as lavadeiras de Caneças, os eminentes dirigentes do nosso Estado levariam sempre as cuecas borradas para os gabinetes ministeriais. E se alguém lhes descobrisse a suja mancha seria um fatal vexame, salvo apenas pela ruína e desgraça do delator. Um homem que se ri dos outros é certamente um desses magalas da revista, burgessos foliões que não respeitam nada nem ninguém, a despeito da ordem estabelecida. São a vergonha deste país: Nós somos os grandes nabos, os nabos sem rival. Por termos a cabeça dura somos os anos de Portugal. E pergunta-se o leitor: mas quem é o nabo e quem a nabiça afinal?
Quis Deus que os portugueses tivessem de pagar um poucochinho por cada vez que provassem o delicioso segredo do refogado. Pensou Ele, a bem da justiça entre os povos, que a simples fórmula que diviniza os grandes pratos da nossa cozinha merecesse pelo menos duas lágrimas de contrição. E então Deus inventou a cebola: Eu cá sou a cebola, pra bem temperar. Mas também faço arder e às vezes chorar. O que Ele não inventou, de certo, foi uma soberba bichona de cabaret como o Zé Manel Rosado. Vê-lo travestido de abóbora é uma tontura, uma visão inescapável, gingando as partes pudibundas, o ramalhete desgrenhado, e o aviso às mulheres casadas que nunca sabem dos maridos às duas da madrugada: Eu cá sou a abóbora, sou bem redondinha. Com o doce de abóbora você perde a linha!
E chega a Mariema, seguríssima de si. Vestiram-lhe o tesouro minhoto mas ela canta a Madragoa, que apesar da má fama (como Alfama) não se perde a eito em enleios sórdidos nos milheirais. Emancipada, esclarece a vontade das mulheres com língua, sem tento nela, porque é assim que se vingam na vida contra os homens que as desfolham à toa, e ensina-nos: primeiro o galanteio, depois a foda. Sou loura e elegante. Não sou nenhuma badalhoca! Vocês sabem o que é que eu sou? Sou uma bela maçaroca.
A compleição das melancias é fina e exótica, pulsante de riqueza e cheia de sabor. Elegantíssima, a Lia Gama enverga à cabeça a fatia da perdição. É uma lua vermelha – não, da cor da carne, a cor da tentação: Verde e encarnada, eu cá sou demais. Sou a bela melancia, de comer e chorar por mais! A cenoura e o rabanete vêm lado a lado. Que bizarria de sotaques! A Paula Guedes péla-se por tripas: Eu sou a cenoura que faz os olhos bonitos. A Maria de Lima prefere scones na Versailhes. Pois eu cá sou o rabanete, muito bom para os rapazitos. Mas nenhuma, ao longo de vinte e seis episódios, conseguiu deslargar-se do Baião. (Onde andará ele?)
Sustemos a respiração. Desliza toda de branco, deslumbrante como as uvas do vinho consagrado, do vinho profanado, do vapor dos espíritos ardentes. Com o manto alvo ela afasta a bebida torpe. O carrascão dava emprego a um milhão de portugueses, metade que produzia o vinho, metade que tratava dos cirróticos enfermos. Mas não é esse vinho que ela traz. Este é o néctar aprimorado pelos anos e pela arte, filho do homem que fecunda a terra. É o magnífico resplendor que cobre Ana Zanatti, Baco feminino nesta orgia de hortaliças. Mas não se iludam, até os deuses gostam de se consolar na leveza dos venenos humanos: As uvas portuguesas dão sempre que falar. Com tanta uva na cabeça já estou a flipar!
E já só faltam eles. Falham o tempo, correm as escadas, apressados, vermelhos, redondos. São os tomates irmãos, Baião e Monchique, Monchique e Baião. Nas duplas memoráveis, eles ficarão sempre ligados à Grande Noite. Eram certas as gargalhadas do público quando apareciam, sempre sempre. É a rir que se faz o teatro, a revista, um cozido e uma salada. E a rir encerram eles o desfile de hortaliças e todos os brilhantes frutos que desfilaram naquele palco: Não podíamos faltar, jóias de grandes quilates. Aqui estamos meus senhores, nós somos os tomates!

A apoteose. Eis que começa o sonho da abundância, a chuva de couve e repolho que o povo do Variedades se deita a braços para apanhar. É o delírio, maravilhoso delírio daquele hino. De mão na anca, todos cantam: vivam as hortaliças, viva o teatro de revista, vivam os legumes estrangeirados, vivam os nabos mal-amados, viva o Parque Mayer, viva o esparregado à colher, vivam as favas com chouriço, viva o tubérculo metediço, viva o grelo e a chalota, viva a Marina Mota, viva o Vasco Santana, viva a sopa Juliana, viva a nossa agricultura, viva a contra-baixa-cultura, viva o pelintra, a bichona e a galdéria, viva o Portugal do Filipe La Féria!
Por LEITÃO Pedro