terça-feira, 7 de março de 2017

O Mestre de Culinária sugere: Salada de Pepino e de Tomates



Hoje, na Sagrada Dancetaria, inauguramos uma nova rubrica, dedicada aos prazeres da nossa cozinha. Em "O Mestre de Culinária sugere" iremos apresentar deliciosas propostas para enriquecerem a vossa mesa e melhorarem a vossa dieta, recorrendo aos sábios conselhos dos arautos da música popular portuguesa. Nenhum outro género musical recorre tanto ao universo da gastronomia para inspiração poética e estilística das suas composições. É chegada a hora de deixar o Pimba penetrar no domínio das panelas e dos tachos, e permitir que ele nos guie a novos píncaros de exaltação gustativa. Que sejam os nossos cancioneiros a enfeitar a travessa, mesmo que o seu verdadeiro propósito seja o de nos deslumbrar pelo prazer da boca para, assim, forçar a entrada na nossa cozinha e vir cá cheirar o bacalhau.

Findo o tempo de folia do entrudo, começa agora um período de abstinência e contenção, livre dos excessos e dos bacanais próprios daquela época. Acabaram-se os banquetes faustosos. Para diluir os abusos do Carnaval, hoje propomos uma simples salada, com dois ingredientes apenas: pepino e tomates, na proporção exacta de um (1) daquele para cada dois (2) destes. Perguntam vocês, que refeição desenxabida é esta, na estreia de tão promissora rubrica? Pois, engane-se quem assim pensa. No final deste belo repasto, desafiamos quem ouse acusar insatisfação.

Dois legumes emblemáticos, ícones da tão célebre dieta mediterrânica. Há tanto a dizer sobre eles.
Nel Monteiro começará a discorrer sobre o pepino português. De Norte a Sul, contam-se tantas variedades de pepino como tão variadas são as formas de o degustar. Cada província com o seu jeito de o tragar, cada menina que o vai lambiscando ao ritmo da dança da sua aldeia. Nel Monteiro é como um Leite de Vasconcelos, pai da etnografia portuguesa, no que se refere ao manejo do pepino por esse país fora. A sua investigação (1994, álbum"Bronca na Discoteca") cinge-se a uma simples questão, repetida por uma roda-viva de lugares e lugarejos: «Como gosta do pepino? Menina de Chaves diga!», ao que lhe responde qualquer moça flaviense: «Ora bem, gosto dele bem grandinho / para encher bem a barriga!». Ao longo de toda a canção-dissertação ficamos a saber que a rapariga de Viseu também prefere o legume avantajado, pois «Pra pequena já sou eu». Que, em Santarém, se o pepino pecar por dimensão sente-se um enorme desconsolo – «Pequeno não sabe bem». Que, em Portimão, são tão portentosos que servem «Pra mais uma refeição». E que, a bem dizer, estamos em sintonia com as moças da Estremadura, que preferem o pepino em salada «Com tomates à mistura». Por fim, Nel Monteiro avança mui doutamente uma simples mas luminosa tese, apoiada efusivamente por todas as mulheres deste país: «Ora vira, vira, vira / Vira e torna a virar / Quem tem pepino pequeno / Não tem freguês pra comprar!».



O tomate é um legume delicado que deve ser mexido com cuidado; um toque mais afoito deixará o tomate pisado e lá se vai o refogado! Os povos do Sul vêem o tomate como o fruto do amor. Há quem ofereça uma bela tomatada à sua amada como quem oferece um ramalhete de rosas vermelhas. E, convenhamos, não é essa borbulha escarlate uma dádiva tão superior? Afinal, quantos usos culinários tem a pomposa e estéril flor, tão popular entre os namorados de outras latitudes?
Numa terna e romântica cantiga, Ele e Ela (circa 1988) ensinam os casais apaixonados a manusear correctamente a tomateira. Ele, seu cuidadoso perceptor, diz a Ela, extremosa principiante, que deve «[Pôr]-lhes água quente para crescer / Dentro do teu quarto e junto à cama» e, cioso do pedigree que os acompanha, comanda-lhe que «Se alguém meus tomates pretender / Tu respondes: são tomates com fama». Outros cuidados são invocados, entre os quais o que usar sempre bons utensílios de cozinha, como os que são anunciados nas televendas. E a advertência final, dirigida a quem não está habituado a comer legumes frescos, acabados de colher da horta. Sujeitos aos humores da natureza, e livres de quaisquer cosmética que comprometa o seu sabor, alguns tomates podem vir ainda verdes, ou ligeiramente deformados. Recomenda-lhe então que os ponha «Na estufa e não no lixo / Não digas que o meu tomateiro não presta. / E se do meio de dois sair um bicho / Recorda-te amor que o bicho quer festa». Muitas vezes tido por sinal de imundice, esta é a clara prova da pureza da hortaliça. É a mais valiosa lição que Ele dá a Ela: que não deve renegar o que lhe parece fava, se pode vir a revelar-se o mais precioso brinde.




Em tempos idos, Leonel Nunes decidiu trocar as comodidades doces mas pastosas da rotina citadina pelo chamamento telúrico do interior distante, lá onde pudesse, num torrão verdejante de sua propriedade, ver crescer o milagre da hortaliça. E não se poupou a esforços para engendrar um viçoso tomatal, e conta que «Plantei, cavei e reguei / Dediquei-me inteiramente» (1994, álbum "Porque não tem talo o nabo"). Eis que, com o tempo, reparou num bizarro intruso: no meio dos sumarentos rubis que eram as suas tomatinas jóias, surgiu um espécimen oblongo, verde e fulvo de nervos, um possante pepino que «Fazia um grande contraste / Por ser grosso e ramalhudo / Um pepino entre os tomates / Estava um caso bicudo». O estranho inspira nos homens reacções de fascínio e de temor, instintos irmãos que originam condutas em concordância. Leonel não hesita um segundo perante esse legume que o desassossega e avança para o destruir. Mas então uma voz mais prudente chama-o à distância, eco da curiosidade humana perante os mistérios da natureza: «Pensei logo em arrancá-lo / Como uma erva daninha / Mas apareceu a gritar / Minha boa mulherzinha: / ”Ó homem, não te precipites! / Deixa o pepino onde está / Pra fazer boa salada / Melhor do que isto não há”». Está nesta estrofe a ancestral divisão da lide doméstica que, não obstante a obsolescência sociológica a que o progresso a votou, permitiu entre homem e mulher um salutar equilíbrio de funções, para proveito de ambos. Se a ele cabia o trabalho agreste da enxada, ela dominava o supino mester da cozinha. E, assim, dando uma intemporal lição ao seu dedicado esposo, travou-lhe o instinto de verdugo, salvando a verdura, para mais tarde se deliciarem com a espontânea criação que a terra, na sua infinita e primordial sabedoria, inventou naquele frondoso tomatal.



Mais habituados aos enigmas da Natureza estão os monges, guardiões dos segredos ancestrais do mundo. A culinária é a mais antiga e cobiçada forma de alquimia, pela qual os rudes proveitos da lavra se transformam no oiro da mesa de jantar. O mistério principia na terra, quando a semente é colocado no seu ventre, de onde desponta o rebento e, pela carícia do sol, se vêem depois tingidos de rubro os pequenos tomatinhos, e o pepino se intumesce de água fresca, contorcendo de alegria no solo. Quando a mão do abade o colhe e, com cuidado e ternura, o transporta para a cozinha para se preparar o repasto, dá-se a consagração do milagre que deixa os fiéis a suspirar de desejo por um vislumbre dos gloriosos frutos que, através da salvação, lhes estão reservados no paraíso celeste. E cantam, a uma só voz, como quem desfia uma doce suplica no rosário dos apetites: «A salada é pra comer / E o pepino bem me sabe / A mim quem me dera ter / Os tomates do Abade».



LEITÃO, Pedro