O marisco povoa o imaginário da música de baile à conta do
seu gostinho apetitoso que a todos delicia. Mas não é apenas nas artes do paladar
que estas iguarias fazem sucesso. Há um certo encantamento nelas, um je ne
c’est quoi que, citando o tio Quim, “faz crescer o lingueirão”
“Dá três beijos na amêijoa, mais dois no berbigão, umas
cocegas na conquilha, faz crescer o lingueirão” – Mariscada, do enorme Quim
Barreiros, incluída no seu álbum de 1998 “na internet”. O marisco - do búzio ao
camarão - é proverbialmente celebrado pelo efeito afrodisíaco que provoca nos
seus comensais. A música de baile homenageia as propriedades mágicas do marisco,
louvando essa graça concedida aos pobres dançadeiros que menos vigor possuem no
amago do seu ser. E que, infelizmente, pela quantidade de canções dedicadas ao
tema, não hão de ser poucos.
Mas a atenção a este assunto não é de agora.
Regressemos a 1931, ao Parque Meyer, para ouvir Beatriz
Costa na revista “O Mexilhão” cantar o efeito revigorante de uma frequentemente
esquecida variedade de marisco, conhecida pelos académicos como Littorina
littorea, e vulgarmente apregoada nas praças deste país como caramujo, burgau, ou, como toda a cidade
de Lisboa cantou durante os oito meses que a peça esteve em cena no Teatro
Variedades, o burrié:
«Quem os não manduca, truca truca bazaruca, tudo chupa o
burrié». Na canção que ouvimos, com a voz de xxx nesta versão editada pela
Rádio Renascença, a vendedora fala ainda de uma “velha pintada que pedidos tem
havido, está tão bem conservada, que conserva dois maridos”. Imaginem, pois,
quão espremidos devem ser os esforços daqueles senhores para, na sua avançada
idade, satisfazerem o apetite voraz da sua abelha rainha.
Pois bem, um senhor mais industrioso descobriu no caranguejo
uma fonte nutritiva de riquíssimo valor. Mas não foi na carne do bicho que o
encontrou. Para conseguir este dom da juventude, o elixir que dá pujança e vitalidade,
admitamos, há quem chupe coisas bem nojentas. De novo Quim Barreiros, que agora
nos traz no mesmo prato crustáceos e escatologia, com o “Caranguejo”, tema do
álbum “Deixa botar só a cabeça”, de 1993.
A edição número 100 da revista literária inglesa Granta é
dedicada ao Sexo. Na capa, que ficou célebre (concebida pelo director artístico
Michael Salu) está um porta-moedas aberto de par em par, os folhos cor-de-rosa
desalinhados, que deixam adivinhar deliciosos segredos, acedidos através de uma
reentrância intima e delicada. A metáfora visual é uma obra de génio. Só a
suplantaria se, em vez da carteira, lá estivesse um bivalve suculento: uma
amêijoa, bem fresca e lavadinha.
A amêijoa da Rosinha é um pitéu revigorante.
Lançada em 2015 num álbum com o mesmo nome, vem das águas frias do Atlântico,
cresce solta nas areias da ria e é colhida e tratada com todo o cuidado. Isto é
importante. Às vezes, mariscos de terceira categoria, engordados em aquários
pestilentos, chegam às nossas cozinhas sem brilho, sem graça, e sem deixar adivinhar
quão venenosas essas criaturinhas se tornaram em tantas trocas e baldrocas.
Foi o que aconteceu à nossa Luciana Abreu, certa
noite, quando depois de um jantar de camarões, a sua cara “se ha puesto roja, se
le palpitó el corazón”, “su cuerpo empiezo a sudar”. Coitada, achava que era a
líbido fervilhante que a arrebatava de calores, afinal era uma reacção alérgica.
E nesta confusão picante e potencialmente letal, se prova o efeito afrodisíaco
do marisco: mais do que um poderoso estimulante do vigor do corpo, é sim o indutor
das mais luxuriantes fantasias que as nossas mentes conseguem engendrar.
Hoje, na Sagrada
Dancetaria, inauguramos uma nova rubrica, dedicada aos prazeres da nossa
cozinha. Em "O Mestre de Culinária sugere" iremos apresentar deliciosas propostas para enriquecerem a vossa mesa e melhorarem a
vossa dieta, recorrendo aos sábios conselhos dos arautos da música popular
portuguesa. Nenhum outro género musical recorre tanto ao universo da
gastronomia para inspiração poética e estilística das suas composições. É chegada a hora de deixar o Pimba penetrar no domínio das panelas e dos tachos, e permitir que ele nos guie a novos píncaros de exaltação gustativa. Que sejam os nossos cancioneiros aenfeitar
a travessa, mesmo que o seu verdadeiro propósito seja o de nos deslumbrar pelo prazer da boca para, assim, forçar a entrada na nossa cozinha e vir cá cheirar o bacalhau.
Findo o tempo de
folia do entrudo, começa agora um período de abstinência e contenção, livre
dos excessos e dos bacanais próprios daquela época. Acabaram-se os banquetes
faustosos. Para diluir os abusos do Carnaval, hoje propomos uma simples salada,
com dois ingredientes apenas: pepino e tomates, na proporção exacta de um (1) daquele para cada dois (2) destes. Perguntam vocês, que refeição
desenxabida é esta, na estreia de tão promissora rubrica? Pois, engane-se quem assim pensa. No final deste belo repasto, desafiamos quem ouse acusar insatisfação.
Dois legumes
emblemáticos, ícones da tão célebre dieta mediterrânica. Há tanto a dizer
sobre eles.
Nel Monteiro começará a
discorrer sobre o pepino português. De Norte a Sul, contam-se tantas variedades de
pepino como tão variadas são as formas de o degustar. Cada província com o seu jeito de o tragar, cada menina que o vai lambiscando ao ritmo da dança da sua
aldeia. Nel Monteiro é como um Leite de Vasconcelos, pai da etnografia portuguesa, no
que se refere ao manejo do pepino por esse país fora. A sua investigação (1994, álbum"Bronca na Discoteca") cinge-se a uma simples questão, repetida por uma roda-viva de lugares e
lugarejos: «Como gosta do pepino? Menina de Chaves diga!», ao que lhe responde qualquer moça flaviense: «Ora bem, gosto dele bem grandinho / para
encher bem a barriga!». Ao longo de toda a canção-dissertação ficamos a
saber que a rapariga de Viseu também prefere o legume avantajado, pois «Pra pequena já sou eu». Que, em Santarém, se o pepino pecar por dimensão sente-se um enorme desconsolo – «Pequeno não sabe bem». Que, em Portimão, são tão portentosos que servem «Pra
mais uma refeição». E que, a bem dizer, estamos em sintonia com as moças da
Estremadura, que preferem o pepino em salada «Com tomates à mistura». Por fim, Nel Monteiro avança mui
doutamente uma simples mas luminosa tese, apoiada efusivamente por todas as mulheres deste país: «Ora vira, vira, vira / Vira e torna a virar / Quem tem pepino pequeno /
Não tem freguês pra comprar!».
O tomate é um legume delicado que deve ser mexido com cuidado; um toque mais afoito deixará o
tomate pisado e lá se vai o refogado! Os povos do Sul vêem o tomate como o
fruto do amor. Há quem ofereça uma bela tomatada à sua amada como quem oferece
um ramalhete de rosas vermelhas. E, convenhamos, não é essa borbulha escarlate uma dádiva tão superior? Afinal, quantos usos culinários tem a pomposa e estéril flor, tão popular entre os namorados de outras latitudes?
Numa terna e romântica cantiga, Ele e Ela (circa 1988) ensinam os casais
apaixonados a manusear correctamente a tomateira. Ele, seu cuidadoso perceptor,
diz a Ela, extremosa principiante, que deve «[Pôr]-lhes água quente para crescer
/ Dentro do teu quarto e junto à cama» e, cioso do
pedigree que os acompanha, comanda-lhe que «Se alguém meus tomates pretender /
Tu respondes: são tomates com fama». Outros cuidados são invocados, entre os
quais o que usar sempre bons utensílios de cozinha, como os que são anunciados
nas televendas. E a advertência final, dirigida a quem não está habituado a
comer legumes frescos, acabados de colher da horta. Sujeitos aos
humores da natureza, e livres de quaisquer cosmética que comprometa o seu sabor,
alguns tomates podem vir ainda verdes, ou ligeiramente deformados.
Recomenda-lhe então que os ponha «Na estufa e não no lixo / Não digas que o meu
tomateiro não presta. / E se do meio de dois sair um bicho / Recorda-te amor
que o bicho quer festa». Muitas vezes tido por sinal de imundice, esta é a clara prova da pureza da hortaliça. É a mais valiosa lição que Ele dá a Ela: que
não deve renegar o que lhe parece fava, se pode vir a revelar-se o mais precioso brinde.
Em tempos idos, Leonel Nunes decidiu trocar as comodidades doces mas pastosas da rotina citadina pelo chamamento telúrico do interior distante, lá onde pudesse, num torrão verdejante de sua propriedade, ver crescer o milagre da hortaliça. E não se poupou a esforços para engendrar um viçoso tomatal, e conta que «Plantei, cavei e reguei / Dediquei-me inteiramente» (1994, álbum "Porque não tem talo o nabo"). Eis que, com o tempo, reparou num bizarro intruso: no meio dos sumarentos rubis que eram as suas tomatinas jóias, surgiu um espécimen oblongo, verde e fulvo de nervos, um possante pepino que «Fazia um grande contraste / Por ser grosso e ramalhudo / Um pepino entre os tomates / Estava um caso bicudo». O estranho inspira nos homens reacções de fascínio e de temor, instintos irmãos que originam condutas em concordância. Leonel não hesita um segundo perante esse legume que o desassossega e avança para o destruir. Mas então uma voz mais prudente chama-o à distância, eco da curiosidade humana perante os mistérios da natureza: «Pensei logo em arrancá-lo / Como uma erva daninha / Mas apareceu a gritar / Minha boa mulherzinha: / ”Ó homem, não te precipites! / Deixa o pepino onde está / Pra fazer boa salada / Melhor do que isto não há”». Está nesta estrofe a ancestral divisão da lide doméstica que, não obstante a obsolescência sociológica a que o progresso a votou, permitiu entre homem e mulher um salutar equilíbrio de funções, para proveito de ambos. Se a ele cabia o trabalho agreste da enxada, ela dominava o supino mester da cozinha. E, assim, dando uma intemporal lição ao seu dedicado esposo, travou-lhe o instinto de verdugo, salvando a verdura, para mais tarde se deliciarem com a espontânea criação que a terra, na sua infinita e primordial sabedoria, inventou naquele frondoso tomatal.
Mais habituados aos enigmas da Natureza estão os monges, guardiões dos segredos ancestrais do mundo. A culinária é a mais antiga e cobiçada forma de alquimia, pela qual os rudes proveitos da lavra se transformam no oiro da mesa de jantar. O mistério principia na terra, quando a semente é colocado no seu ventre, de onde desponta o rebento e, pela carícia do sol, se vêem depois tingidos de rubro os pequenos tomatinhos, e o pepino se intumesce de água fresca, contorcendo de alegria no solo. Quando a mão do abade o colhe e, com cuidado e ternura, o transporta para a cozinha para se preparar o repasto, dá-se a consagração do milagre que deixa os fiéis a suspirar de desejo por um vislumbre dos gloriosos frutos que, através da salvação, lhes estão reservados no paraíso celeste. E cantam, a uma só voz, como quem desfia uma doce suplica no rosário dos apetites: «A salada é pra comer / E o pepino bem me sabe / A mim quem me dera ter / Os tomates do Abade».
Estamos a poucas semanas de conhecer o desfecho da
investigação da Operação Marquês, que deverá levar o Ministério Público a
acusar José Sócrates do envolvimento em crimes do mais alto coturno. Hoje, na
rubrica O malhão não é reaccionário…,
regressamos a Março de 2006, altura em que José Sócrates terminava o seu
primeiro ano de mandato como primeiro-ministro do XVII Governo Constitucional. Depois
do descalabro político que a fuga de Durão Barroso para Bruxelas provocou na Direita portuguesa, agudizada subsequentemente pela trágica peça de vaudeville
“O Menino Guerreiro”, protagonizada por Pedro Santana Lopes, José Sócrates
conquistava a maioria absoluta no Parlamento e tomava firmemente as rédeas do
país, inaugurando uma cavalgada heróica que culminaria na conquista do prémio “Sexy
Platina” em 2009, atribuída pelo Correio da Manhã ao homem mais sensual de Portugal. Os leitores do diário de maior tiragem do país davam a conhecer o
macho lusitano que mais os fazia suspirar libidinosamente nas horas solitárias
da noite.
Não obstante, José Sócrates foi por muitos considerado o
primeiro-ministro mais autoritário até então. A forma truculenta com lidava com
as críticas, a relação de subserviência que exigia da comunicação social, a
tendência para o controlo totalitário do aparelho de poder, a índole
revanchista das suas declarações públicas, entre outros tiques reveladores de
pouca candura democrática, contribuíram para o epíteto. Paralelamente, e à
semelhança dos seus antecessores, foi um defensor convicto do investimento em
grandes obras públicas. O novo aeroporto da Ota, o comboio de alta velocidade e
a terceira travessia sobre o Tejo formavam a receita que produziria o "inevitável" progresso
económico do país. Esperava-se uma enxurrada de fundos públicos que, à
semelhança do que acontecera com projectos como a Expo 98, o Euro 2004 e a Casa da Música no Porto,
vertesse em jorros abundantes e de «mão beijada / [para] quem já ganha milhões»,
enquanto pelo país "real" se contavam tantos «milhões sem ganhar nada». A denúncia era feita, à altura, por Nel Monteiro no seu tema de 2006 Puta Vida Merda Cagalhões (ou PVMC, um acrónimo neutro para quem tolera mal o
vernáculo).
Este álbum, eloquente e vertiginoso, esconde algumas pérolas
de um género que podemos apelidar de “pimba de intervenção” (no caso, com
evidentes guinadas à Direita). Em Nel Monteiro temos o Beppe Grillo da música
popular, um Márinho e Pinto anterior a Márinho e Pinto; temos, enfim, um pioneiro da musical-reacção. As suas canções mais políticas facilmente seriam adaptadas (houvesse imaginação e vontade) como hinos de qualquer movimento populista. Quem olhasse para Justiça Popular, tema seu de 2003, adivinharia já a semente de uma tendência
política que cresceria ao longo dos quinze anos seguintes, em que veríamos as sinistras franjas do espectro político converterem-se em galvanizadores da indignação dos
descamisados do novo século e, finalmente, nos seus legítimos representantes, eleitos através de sufrágios livres: «Para onde vão os milhões / Que a Portugal vêm parar? /
Que um operário não vê / Mas que os tem de pagar. / Enquanto os operários /
Melhor vida não tiverem / A merda que os ricos cagam / Que a limpem se
quiserem». Como se vê, a escatologia anda de mão-dada com o discurso populista,
algo frequentemente apontado a quem os profere (aos discursos, não à
escatologia), sobretudo em tom depreciativo.
A par deste tópico fedorento, o descrédito pelo sistema democrático é outra
das temáticas recorrentes. A canção Já não cola (2005), lançada a tempo das
legislativas que resultaram na eleição de José Sócrates, apregoa uma clara
desistência nas virtudes do sistema democrático, o grito de frustração do povo que se vê traído por aqueles que o deviam representar, e que vem cristalizada no seguinte mote, glosado ao
longo de todo o tema: «Fazem promessas para o voto cobiçar / É um vale tudo
para subir ao poleiro». Muito se tem escrito sobre a percepção generalizada dos políticos como uma classe corrupta, interessada apenas na perpetuação dos “empregos”
(uma queixa que já em oitocentos era apontada ao funcionalismo público
português) e que, a par de uma proverbial inoperância e incompetência na
resolução dos problemas do país, justificou a entrada em cena de regimes
mais musculados ao longo de toda a história contemporânea. Igual proposta parece ter o autor para os
problemas da nossa infame III República: «Que se acabe essa guerra de papel /
Tudo mentira que ao longe bem se topa / O que é preciso é apostar na mudança /
Para não sermos a vergonha da Europa». E, no refrão, de novo o apelo à salvação
da honra da pátria. «É uma guerra de mata e esfola / Mas que já não cola, mas
que já não cola. / Chegou a hora de erguer a moral / Vai haver mudança, força Portugal!».
Vivesse Nel Monteiro na década de vinte do século passado e rapidamente as suas
cantigas seriam arrebanhadas pelas Revistas populares que premeditaram a chegada
da Ditadura Militar.
Todavia, sendo Nel Monteiro um homem do seu tempo, e sofrendo com o vexame
nacional que diariamente desfila pelos corredores atapetados da Assembleia da República, o artista opta por recordar uma época de paz social e de felicidade, de agruras, é certo, mas, e acima de tudo, de
pessoas humildes e honestas. «Tive de apertar o cinto / Nos tempos de Salazar /
Até na teta da vaca / Ao curral ia mamar. / Às vezes tenho saudades / Desses
tempos que lá vão / O melhor que sei da vida / devo a essa escravidão». Cá
está, a construção de um passado luminoso e de cândida miséria, onde, nas mais
duras privações, o povo descobre o encanto dos pequenos prazeres da vida. Tempo de
homens rijos e da primordial ligação à terra. Das vontades simples do corpo. O
tempo da inocência e da mais pura beleza.
É difícil encontrar na música pimba referências ao lúrido professor de Coimbra que governou o país com mão de ferro durante quarenta anos. Ora, em Mama na Vaca de Nel Monteiro, incluída no já citado disco PMVC,
a referência é dupla: cantado na ode pastoral que é a estrofe citada; e como
invocação da autoridade do sábio, da bênção do pai protector, enfim, como proposta programática
para o regresso a um passado mais feliz: «Nos tempos de Salazar / O pobre
ganhava mal / Mas sempre ainda tinha / Umas vacas no curral. / Quem me dera
encontrar / Esse velho ditador / E dizer-lhe que por cá / Vamos de mal a pior».
Não bastava ao autor dourar a memória de uma realidade que, de resto, só existe
como refúgio nostálgico, artifício típico do sentimentalismo “reaça”. Não. Nel
Monteiro propõe um encontro com o «velho ditador», oferecendo-se para carregar ao lombo a culpa de uma sociedade impenitente. Por ela, contra a vontade dela, roga-lhe misericórdia, tentando o regresso àquele saudoso lar paterno que todo um rebanho tresmalhado renegou em favor de uma aventura irresponsável e estéril – a democracia.
Uma última nota ainda a propósito da carga doutrinária que exala
de cada verso. Nel
Monteiro sente pena por quem, ao contrário dele, não teve o privilégio
de saborear as maravilhas naturais directamente da fonte: «Quem nunca mamou da
vaca / Não sabe o que é bom.» E critica quem, armado em moderno, não passa
afinal de um pacóvio ignorante: «É melhor mamar na vaca / Que mamar no
biberão.» A chave está na última palavra, e na formulação usada. O autor,
imbuído de fervor patriótico, rejeita o galicismo (e mais correcto) biberon, substituindo-o pela terminação lusa –ão.
Não o aflige que, ao optar por esta terminação, está a sacrificar a rima. E não
uma rima qualquer, mas a do próprio refrão! A rima que, na música pimba, é a pulsação do
verso. Nel Monteiro não tem escrúpulos. Não lhe bastava o chorrilho de pestilentas
alusões da cantiga. Era-lhe necessário perpetrar o crime capital que perde o artista: o de
sacrificar a sua arte por essa mais devassa e fria das galdérias que é a
política.
«Ai malhão, malhão / Gritámos “libertação”! / Fecharam-nos
logo a boca / Porque éramos a reacção». Quim Barreiros exprimiu assim o lamento
pela acusação vil de que a música tradicional foi alvo durante o período
revolucionário. Em 1975, em pleno verão quente, lança o tema «O Malhão não é reaccionário»,
que dá nome a um dos seus mais emblemáticos discos. Na verdade, a canção é um
grito de luta contra as tentações totalitaristas de qualquer inclinação – «Fora
a foice e o martelo / Não queremos mais ditaduras / Fora a foice e o martelo / Abaixo
os oportunistas / E os fascistas do Marcelo». O que Quim pedia, dando voz aos
anseios de uma grande maioria que se via como «honesta e trabalhadora», era a
normalização institucional do regime e o respeito pelas liberdades e garantias
democráticas. E deixava no ar a ameaça de que o mesmo povo «Pouco politiqueiro
/ Se lhes pisam o rabo / [É] o mais desordeiro».
Se Quim Barreiros se vê nesta altura forçado a defender a
canção tradicional, tal resulta da polarização política que ameaçava fazer
estalar no país uma guerra civil, em que, esquematicamente, o Norte conservador
e o Sul progressista constituiriam as partes beligerantes. O malhão e a chula,
típicos do Minho, a região mais reaccionária, feudo da Igreja protegido da
ameaça soviética pela acção das milícias do Cónego Melo, eram considerados
pelas forças revolucionárias como verdadeiros hinos ao edifício social do
antigo regime e instrumentos de jugo e de torpor sobre a mente popular. De
certa forma como o fado era para Lisboa, o analgésico do regime contra as
agruras da miserável vida das populações urbanas.
No entanto, nem sempre foi assim. Malhão e cantigas de
intervenção chegaram a partilhar temas progressistas. Um caso célebre é o de
Tino Flores, portuense exilado em Paris por recusar combater na Guerra
Colonial, que vai recorrer à música popular para alertar o povo para a sua
condição de súbdito da opressão de Salazar. Em França, Tino envolve-se em
grupos clandestinos de extrema-esquerda e participa activamente no Maio de
1968. O seus primeiros EPs, gravados por esta altura, têm por títulos “Viva a
revolução”, “Organizado o povo é invencível” e “O povo em armas esmagará a
burguesia”. Chega a tocar ao lado de José Afonso e José Mário Branco à medida
que o seu estatuto artístico se vai consolidando. Era pois na
instrumentalização da música popular que Tino se distinguia dos demais cantautores
da resistência ao fascismo. Acreditava que a mensagem política seria mais
facilmente aceite e mais veementemente instigada a luta se oferecidas num invólucro
musical enérgico e alegre. Esta abordagem contrastava nitidamente com a dos
seus colegas, cujo estilo musical era dominado pelas «expressões performativas
da balada». Assim, Tino Flores acreditava que o malhão e a chula poderiam ser,
ao contrário do que se considerou durante e depois do PREC, aliados da
revolução:
Acho que nessa época foi giro porque houve essa alteração
de as pessoas estarem num espectáculo todos sentadinhos e com aquele ar a ouvir
canções do «coitadinho, foi preso…» e outra coisa era, digamos, o apelo «Vamos
comê-los!». Os temas eram pensados nesse sentido, mais nada. Era aquilo que eu
achava que devia dizer (…) e portanto um gajo tinha de chegar ali e ganhar
aquilo assim logo! E isso era a eficácia (…) Uns ficavam chocados e depois
alinhavam, mas depois a malta mais jovem chegava cá fora e dizia-me «Foda-se, é
isso que um gajo quer ouvir, o que a malta tem de fazer». Era esse o
objectivo. [1]
Estes parágrafos servem de introdução a uma nova rubrica que
inauguramos n’A Sagrada Dancetaria. Se esperamos ter defendido a música
popular das acusações de reaccionarismo, a verdade é que mesmo nos melhores
panos caem terríveis nódoas. Na rubrica “O malhão não é reaccionário, ao
contrário de…» iremos inventariar e dissertar sobre as nódoas musicais que ao
longo dos anos têm apregoado as virtudes do mais arreigado conservadorismo.
Percorreremos todos os géneros da música tradicional portuguesa, já que a nefanda
estaca onde o fascismo pega de enxertia ganha viço em qualquer formato. Não
cumprimos outra missão que não a da crítica instrutiva das cantigas que
ouvimos, aflorando todas as vertentes em que tocam: musical, literária, social
e política. Porque é nosso dever zelar pela libertação que, depois de 48 anos
de mutismo, nos deu os cantares brejeiros e a alegria de dançar sobre as
grilhetas das convenções. Também foi pelo Pimba que se fez Abril.
[1] Tino Flores citado em «Discos na luta: a canção de protesto na produção fonográfica em Portugal nas décadas de 1960 e 1970» (2012) de José Hugo Pires Castro, Lisboa: FCSH, p. 46.
A primeira vez que me cruzei com a figura de Mário Soares
vinha ele montado num grande elefante branco ricamente ornamentado, seguido por
outros dois elefantes, mais pequenos e não tão ricamente ornamentados, que transportavam, respectivamente, a Primeira-Dama e a Margarida Marante, a jornalista que o acompanhava naquela
viagem presidencial. Quando ele aparece no ecrã da televisão, traz um ar
majestático, iluminado pelo traje todo branco, pelas lantejoulas que simulam
pedras preciosas, pelo turbante laranja e pelo penacho no topo da cabeça, que
balança enquanto a cabeça que o enverga atira copiosos beijos e gracejos à
plateia. A Margarida vem rabugentíssima. Já não pode com as picadas dos
mosquitos, tem nojo da comida e queixa-se dos indígenas, sempre sujos e pegajosos.
O Mário desce do elefante, tranquiliza-a, enquanto dos nativos recebe vários colares de flores exóticas. Ao agradecer-lhes de braços abertos, imediatamente se prostram a seus pés, começando a adorá-lo como um ícone. O Marajá de Belém
magnanimamente concede-lhes essa permissão e, como prova da sua gratidão, participa com eles numa dança
tribal. Pouco depois, a canção transforma-se radicalmente e passamos a ouvir da sua
boca o verso “Já fui o conquistador!” popularizado pelos Da Vinci e que resume perfeitamente
a tour de visitas presidenciais que
marcou esse ano de 1992.
A rábula do Marajá de Belém é indissociável da figura que tenho de Mário Soares.
Interpretado pelo José Manuel Rosado, aka
Lydia Barloff, rainha máxima da história do travestismo em Portugal, a caricatura encenada no palco do Variedades pela mão do La Féria é, na sua circunstância,
um tributo às conquistas políticas de Soares.
A figura de Soares era dada a este tipo de apropriações cómicas.
Republicano até ao tutano, foi o mais monárquico dos presidentes de todas as
três repúblicas (isto é, até à chegada de Marcelo, o Segundo). Mas a legitimidade de monarca tinha-a ele conquistado, não lhe fora passada ou herdada. A sua
majestade, ao contrário da que dourava os últimos da Casa de Bragança, advinha de uma cruzada
de décadas, na sua índole idêntica à da fundação das dinastias reinantes do nosso
país. Tampouco se apresentava como um missionário da política, mártir ao
serviço da pátria e exemplo de sacrifício. Esse número havia rodado ininterruptamente
durante cinco décadas na Emissora Nacional, cinquenta longos anos em que Soares foi, efectivamente, a
voz e cara de uma missão política que lhe exigiu enormes sacrifícios ao serviço
da pátria. Mas, ao contrário dos seus antecessores, Soares não quis adornar a
sua figura política com um manto (tão justo, no seu caso) sofrido e
tolhido pelo dever. Sem apagar a memória, quis que o país desentorpecesse os
membros e voltasse a gostar de viver; e voltasse a gostar de rir. Consigo ou de
si, não importava, desde que risse com gosto.
A Revista é um terreno ingrato para um revolucionário, já que vive de um catálogo prenho de referências ao antigo regime. São as marchas populares,
inventadas pelo Ferro para adocicar a propaganda da ditadura. São os ícones da
miséria, dos bairros decrépitos ao arraial de profissões típicas que mascaram a
pobreza. É o panteão de personagens que viveram em colaboração com o regime e que
com ele, e por ele, se fizeram grandes. Mas era também na Revista que se
beliscava a moral e os bons costumes; que se mandava, com jeitinho, os
poderosos à merda; e onde se apresentavam novas ladainhas brejeiras para contornar
o lápis azul, deixando o censor a clamar “ó pistari, ó pistaró” pela corrupção moral
da populaça.
A brilhante síntese soarista é retratada na figura do Soares
caricaturado em Marajá de Belém, e o seu programa ideológico não podia ser tornado mais clarividente
por outra forma do que através de um número de Revista. Aproveitar as coisas boas da
vida sem mortificação. Ser vaidoso no homem e no trabalho que se constrói.
Aceitar a imperfeição própria, a imperfeição dos outros, a imperfeição moral (palavra odiosa) do povo, e fazer
pouco de todas as imperfeições para as corrigir sem recorrer ao cilício. Romper
com o mal do passado sem esquecer que no passado houve gente que, ao
contrário dele, não lutou, que colaborou, que viveu como pôde e como sabia
melhor. Soares quis que esses também tivessem direito a rir, quis que a Revolução
fosse feita para que os que não lutaram também pudessem – sozinhos, com ele ou
dele – rir mais francamente, mais desbragadamente, mais livremente.
Em última análise, devemos ao Marajá de Belém a possibilidade
de apreciarmos todas as coisinhas boas que trazemos para este blogue. Sem ele
não haveria a subtileza perversa das letras do Pimba. Só haveria enjoativas
marchas de arco e balão ou os luminosos mas distantes amanhãs das cantigas de
intervenção. Não compraríamos panelas de pressão sem a adesão à CEE. Não recorreríamos à comunhão de bens sem um Estado laico. Não exploraríamos
as nossas taras e manias, ou porque ainda estaríamos agrilhoados ao tríptico
castrador de outrora, ou porque nos dedicaríamos compenetradamente a desenhar
um Homem Novo expurgado de tais defeitos. Fazendo eco do rol de obituários que
inundam os jornais por estes dias, diríamos que Soares é o pai da democracia e de
todas as coisas que enumerámos. Mas adivinho que o Marajá dissesse (como disse, de
facto, numa das muitas vezes em que foi interpretado por Mário Soares), citando
outra grande estrela da Revista: «Vá chamar pai a outro».