A primeira vez que me cruzei com a figura de Mário Soares
vinha ele montado num grande elefante branco ricamente ornamentado, seguido por
outros dois elefantes, mais pequenos e não tão ricamente ornamentados, que transportavam, respectivamente, a Primeira-Dama e a Margarida Marante, a jornalista que o acompanhava naquela
viagem presidencial. Quando ele aparece no ecrã da televisão, traz um ar
majestático, iluminado pelo traje todo branco, pelas lantejoulas que simulam
pedras preciosas, pelo turbante laranja e pelo penacho no topo da cabeça, que
balança enquanto a cabeça que o enverga atira copiosos beijos e gracejos à
plateia. A Margarida vem rabugentíssima. Já não pode com as picadas dos
mosquitos, tem nojo da comida e queixa-se dos indígenas, sempre sujos e pegajosos.
O Mário desce do elefante, tranquiliza-a, enquanto dos nativos recebe vários colares de flores exóticas. Ao agradecer-lhes de braços abertos, imediatamente se prostram a seus pés, começando a adorá-lo como um ícone. O Marajá de Belém
magnanimamente concede-lhes essa permissão e, como prova da sua gratidão, participa com eles numa dança
tribal. Pouco depois, a canção transforma-se radicalmente e passamos a ouvir da sua
boca o verso “Já fui o conquistador!” popularizado pelos Da Vinci e que resume perfeitamente
a tour de visitas presidenciais que
marcou esse ano de 1992.
A rábula do Marajá de Belém é indissociável da figura que tenho de Mário Soares.
Interpretado pelo José Manuel Rosado, aka
Lydia Barloff, rainha máxima da história do travestismo em Portugal, a caricatura encenada no palco do Variedades pela mão do La Féria é, na sua circunstância,
um tributo às conquistas políticas de Soares.
A figura de Soares era dada a este tipo de apropriações cómicas.
Republicano até ao tutano, foi o mais monárquico dos presidentes de todas as
três repúblicas (isto é, até à chegada de Marcelo, o Segundo). Mas a legitimidade de monarca tinha-a ele conquistado, não lhe fora passada ou herdada. A sua
majestade, ao contrário da que dourava os últimos da Casa de Bragança, advinha de uma cruzada
de décadas, na sua índole idêntica à da fundação das dinastias reinantes do nosso
país. Tampouco se apresentava como um missionário da política, mártir ao
serviço da pátria e exemplo de sacrifício. Esse número havia rodado ininterruptamente
durante cinco décadas na Emissora Nacional, cinquenta longos anos em que Soares foi, efectivamente, a
voz e cara de uma missão política que lhe exigiu enormes sacrifícios ao serviço
da pátria. Mas, ao contrário dos seus antecessores, Soares não quis adornar a
sua figura política com um manto (tão justo, no seu caso) sofrido e
tolhido pelo dever. Sem apagar a memória, quis que o país desentorpecesse os
membros e voltasse a gostar de viver; e voltasse a gostar de rir. Consigo ou de
si, não importava, desde que risse com gosto.
A Revista é um terreno ingrato para um revolucionário, já que vive de um catálogo prenho de referências ao antigo regime. São as marchas populares,
inventadas pelo Ferro para adocicar a propaganda da ditadura. São os ícones da
miséria, dos bairros decrépitos ao arraial de profissões típicas que mascaram a
pobreza. É o panteão de personagens que viveram em colaboração com o regime e que
com ele, e por ele, se fizeram grandes. Mas era também na Revista que se
beliscava a moral e os bons costumes; que se mandava, com jeitinho, os
poderosos à merda; e onde se apresentavam novas ladainhas brejeiras para contornar
o lápis azul, deixando o censor a clamar “ó pistari, ó pistaró” pela corrupção moral
da populaça.
A brilhante síntese soarista é retratada na figura do Soares
caricaturado em Marajá de Belém, e o seu programa ideológico não podia ser tornado mais clarividente
por outra forma do que através de um número de Revista. Aproveitar as coisas boas da
vida sem mortificação. Ser vaidoso no homem e no trabalho que se constrói.
Aceitar a imperfeição própria, a imperfeição dos outros, a imperfeição moral (palavra odiosa) do povo, e fazer
pouco de todas as imperfeições para as corrigir sem recorrer ao cilício. Romper
com o mal do passado sem esquecer que no passado houve gente que, ao
contrário dele, não lutou, que colaborou, que viveu como pôde e como sabia
melhor. Soares quis que esses também tivessem direito a rir, quis que a Revolução
fosse feita para que os que não lutaram também pudessem – sozinhos, com ele ou
dele – rir mais francamente, mais desbragadamente, mais livremente.
Em última análise, devemos ao Marajá de Belém a possibilidade
de apreciarmos todas as coisinhas boas que trazemos para este blogue. Sem ele
não haveria a subtileza perversa das letras do Pimba. Só haveria enjoativas
marchas de arco e balão ou os luminosos mas distantes amanhãs das cantigas de
intervenção. Não compraríamos panelas de pressão sem a adesão à CEE. Não recorreríamos à comunhão de bens sem um Estado laico. Não exploraríamos
as nossas taras e manias, ou porque ainda estaríamos agrilhoados ao tríptico
castrador de outrora, ou porque nos dedicaríamos compenetradamente a desenhar
um Homem Novo expurgado de tais defeitos. Fazendo eco do rol de obituários que
inundam os jornais por estes dias, diríamos que Soares é o pai da democracia e de
todas as coisas que enumerámos. Mas adivinho que o Marajá dissesse (como disse, de
facto, numa das muitas vezes em que foi interpretado por Mário Soares), citando
outra grande estrela da Revista: «Vá chamar pai a outro».
LEITÃO, Pedro
LEITÃO, Pedro
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