segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

O Marajá de Belém


A primeira vez que me cruzei com a figura de Mário Soares vinha ele montado num grande elefante branco ricamente ornamentado, seguido por outros dois elefantes, mais pequenos e não tão ricamente ornamentados, que transportavam, respectivamente, a Primeira-Dama e a Margarida Marante, a jornalista que o acompanhava naquela viagem presidencial. Quando ele aparece no ecrã da televisão, traz um ar majestático, iluminado pelo traje todo branco, pelas lantejoulas que simulam pedras preciosas, pelo turbante laranja e pelo penacho no topo da cabeça, que balança enquanto a cabeça que o enverga atira copiosos beijos e gracejos à plateia. A Margarida vem rabugentíssima. Já não pode com as picadas dos mosquitos, tem nojo da comida e queixa-se dos indígenas, sempre sujos e pegajosos. O Mário desce do elefante, tranquiliza-a, enquanto dos nativos recebe vários colares de flores exóticas. Ao agradecer-lhes de braços abertos, imediatamente se prostram a seus pés, começando a adorá-lo como um ícone. O Marajá de Belém magnanimamente concede-lhes essa permissão e, como prova da sua gratidão, participa com eles numa dança tribal. Pouco depois, a canção transforma-se radicalmente e passamos a ouvir da sua boca o verso “Já fui o conquistador!” popularizado pelos Da Vinci e que resume perfeitamente a tour de visitas presidenciais que marcou esse ano de 1992.  
A rábula do Marajá de Belém é indissociável da figura que tenho de Mário Soares. Interpretado pelo José Manuel Rosado, aka Lydia Barloff, rainha máxima da história do travestismo em Portugal, a caricatura encenada no palco do Variedades pela mão do La Féria é, na sua circunstância, um tributo às conquistas políticas de Soares.
A figura de Soares era dada a este tipo de apropriações cómicas. Republicano até ao tutano, foi o mais monárquico dos presidentes de todas as três repúblicas (isto é, até à chegada de Marcelo, o Segundo). Mas a legitimidade de monarca tinha-a ele conquistado, não lhe fora passada ou herdada. A sua majestade, ao contrário da que dourava os últimos da Casa de Bragança, advinha de uma cruzada de décadas, na sua índole idêntica à da fundação das dinastias reinantes do nosso país. Tampouco se apresentava como um missionário da política, mártir ao serviço da pátria e exemplo de sacrifício. Esse número havia rodado ininterruptamente durante cinco décadas na Emissora Nacional, cinquenta longos anos em que Soares foi, efectivamente, a voz e cara de uma missão política que lhe exigiu enormes sacrifícios ao serviço da pátria. Mas, ao contrário dos seus antecessores, Soares não quis adornar a sua figura política com um manto (tão justo, no seu caso) sofrido e tolhido pelo dever. Sem apagar a memória, quis que o país desentorpecesse os membros e voltasse a gostar de viver; e voltasse a gostar de rir. Consigo ou de si, não importava, desde que risse com gosto.
A Revista é um terreno ingrato para um revolucionário, já que vive de um catálogo prenho de referências ao antigo regime. São as marchas populares, inventadas pelo Ferro para adocicar a propaganda da ditadura. São os ícones da miséria, dos bairros decrépitos ao arraial de profissões típicas que mascaram a pobreza. É o panteão de personagens que viveram em colaboração com o regime e que com ele, e por ele, se fizeram grandes. Mas era também na Revista que se beliscava a moral e os bons costumes; que se mandava, com jeitinho, os poderosos à merda; e onde se apresentavam novas ladainhas brejeiras para contornar o lápis azul, deixando o censor a clamar “ó pistari, ó pistaró” pela corrupção moral da populaça.
A brilhante síntese soarista é retratada na figura do Soares caricaturado em Marajá de Belém, e o seu programa ideológico não podia ser tornado mais clarividente por outra forma do que através de um número de Revista. Aproveitar as coisas boas da vida sem mortificação. Ser vaidoso no homem e no trabalho que se constrói. Aceitar a imperfeição própria, a imperfeição dos outros, a imperfeição moral (palavra odiosa) do povo, e fazer pouco de todas as imperfeições para as corrigir sem recorrer ao cilício. Romper com o mal do passado sem esquecer que no passado houve gente que, ao contrário dele, não lutou, que colaborou, que viveu como pôde e como sabia melhor. Soares quis que esses também tivessem direito a rir, quis que a Revolução fosse feita para que os que não lutaram também pudessem – sozinhos, com ele ou dele  rir mais francamente, mais desbragadamente, mais livremente.
Em última análise, devemos ao Marajá de Belém a possibilidade de apreciarmos todas as coisinhas boas que trazemos para este blogue. Sem ele não haveria a subtileza perversa das letras do Pimba. Só haveria enjoativas marchas de arco e balão ou os luminosos mas distantes amanhãs das cantigas de intervenção. Não compraríamos panelas de pressão sem a adesão à CEE. Não recorreríamos à comunhão de bens sem um Estado laico. Não exploraríamos as nossas taras e manias, ou porque ainda estaríamos agrilhoados ao tríptico castrador de outrora, ou porque nos dedicaríamos compenetradamente a desenhar um Homem Novo expurgado de tais defeitos. Fazendo eco do rol de obituários que inundam os jornais por estes dias, diríamos que Soares é o pai da democracia e de todas as coisas que enumerámos. Mas adivinho que o Marajá dissesse (como disse, de facto, numa das muitas vezes em que foi interpretado por Mário Soares), citando outra grande estrela da Revista: «Vá chamar pai a outro».

LEITÃO, Pedro
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