terça-feira, 14 de abril de 2015

Maria Destemida

Maria é uma mulher emancipada, obstinada, decidida a fazer da vida o que lhe aprouver, Maria inveja aos homens a ampla prerrogativa concedida pelo costume, ressente-lhes a esforçada via que a obrigam – ilusão de igualdade, sina de dificuldade (por necessidade) – Maria é uma afronta à ordem e à compostura, como os artistas em ditadura ou as meretrizes de morada estabelecida, e por isso o povo lhe deu o título e a sorte madrasta: Maria Destemida, mulher da vida, rainha da estrada.
Maria leva os dias em perpétua viagem pelos itinerários. Faz a vida na estrada. Não ataca nas curvas nem palmilha as esquinas buscando sustento. A comparação é fácil e grosseira. Maria tem um trabalho de homem e ninguém lhe perdoa a desfaçatez. Mas ela continua, impassível. Agarra o volante como quem segura o leme, e segue em frente, no meio de toda a gente, sem medo de nada.
Os comentários, piropos e graçolas contorna-os como os obstáculos no caminho, no seu caminho – a estrada. Foi nela que Maria traçou o destino porque cedo deitou mãos à vida. Fez da vontade os seus trilhos, afoita e desgraçada, mulher destemida, mulher ingrata. Maria pagará pela ousadia.
Leonel Nunes compôs-lhe uma canção. Ele é um homem do seu tempo, versejador da condição humana, atento ao Ser e à sua circunstância. No poema, Leonel tenta uma árdua conciliação entre as egrégias leis da tradição e as aspirações emancipadoras que mulheres como Maria clamam. A harmonia é possível, Leonel sabe-o. Mas entrava-a a arrogância, quer do povo, quando maldiz Maria, quer da mulher, quando recusa toda e qualquer a ajuda. Leonel recorre então ao mais subtil ardil para enjeitar o caminho da concórdia: a ironia.
O autor louva a ousadia de Maria ao cantá-la nas palavras jocosas do povo, quando este a acusa de vadiagem. Traça os preceitos, as comparações, e é pela sujeição ao ridículo, à tacanhez dos seus acusadores, que Maria é elevada como força empreendedora entre o marasmo de ignorância que a cerca. Por outro lado, subjuga Maria à sua natural (porque natural é toda a carne) condição de mulher. Diríamos, de mulher errante, de ovelha extraviada do rebanho. Inoperante na sua solitude, face à impotência para mudar um pneu furado e assim seguir a sua marcha, Leonel não se assume diferente dos outros homens pecadores. Também ele se ri de Maria – também ele apedrejaria Madalena, ainda que para a salvar da multidão. Mas ao compreender-lhe a humanidade, ao escutar nela a solidão, é capaz de estender solicitamente a mão, redimindo em Maria a arrogância que a fere fatalmente. No final da troca do pneu furado por um novo, perfeito, quem sabe se os caminhos solitários da noite não serão já trilhados por um volante a quatro mãos.

Moral da história. Não a sabemos. Talvez a recusa da moral, a sua arrogância e severidade para com a natural ignorância do homem. Mas também a arrogância dele (dela) ao condenar toda a ajuda, a arrepio da douta e boa moral. Nunca saberemos ao certo. Mas algo é incontornável, implacável, claro e sempre presente: a ironia do nosso destino. Nesta música há um elemento que surge como o timbre da crua constatação do seu inexorável sentido. Leonel canta no refrão: «Ficaste empanada, furada na estrada, e agora…». As reticências preparam a punchline: «quem ri --- sou eu!». Não por acaso, ao pronunciar o verbo “rir” cai num relâmpago o som de um prato de bateria que inflama o verso como um golpe de adaga e é na espinha que sentimos a mordidela, a ácida mas libertadora mordidela da ironia. O seu som ressoa por todo o refrão, e quando termina a canção ainda persiste no nosso pensamento, como o choque de descobrir, pelo golpe de um prato de bateria, a derradeira comédia de toda a existência. É esta a beleza e a mestria de Leonel Nunes.


Por LEITÃO Pedro

segunda-feira, 16 de março de 2015

Delírio de Hortaliça


Este texto não é sobre música. É sobre hortaliça. Sobre a ousadia de conceber um número de variedades com hortaliça, de cantá-la e elevá-la em hino. Das salvas com que o público, pleno de alegria, recebe a cenoura, a maçaroca e a melancia nos degraus de prata que se esfumam na ribalta. A alegria com que o público apanha as folhas de repolho como numa Babilónia em que se atirassem moedas de ouro. Mas não é o metal estéril. É repolho que aconchega a fome, madrasta sombra que atormenta um país pobre. Apregoa-se que o teatro é o espelho da vida, do fado da vida, da puta da vida. Mas na Lisboa de noventas, onde se canta o repolho fabuloso, a patrioticíssima couve e a Bruxelas prometida, a vida era um sublime folie-brejeiro doce número de revista.
Surge a Europa que anuncia: A toda a Nação, dedicamos este número – fresco, digestivo e patriótico: Um grande bacanal das Hortaliças de Portugal! Esta não é a Europa chocha como a de hoje. É uma efígie gloriosa do sonho comunitário, livre do acrónimo tenebroso da PAC, ignorante do PEC, que apresenta no palco os trunfos de cada cultura, seja Goethe ou sejam grelos, porque há tanta sapiência humana no Werther como nas migas com broa. A mãe ideal sabia isso. A bênção dela à nossa hortaliça foi o que nos embalou pelos anos noventa fora, os últimos da inocência.
Começa o desfile. Descem quatro delgadas bailarinas, as flores do Lá Féria: Nós somos as alfaces, as alfaces bem verdinhas. Por sermos de Lisboa até nos chamam alfacinha. É verdade que Lisboa foi a capital do Império, mas lembrem-se que se não fossem as saloias de Benfica não haveria sopa quentinha e boa nas mesas de Alvalade; se não fossem as lavadeiras de Caneças, os eminentes dirigentes do nosso Estado levariam sempre as cuecas borradas para os gabinetes ministeriais. E se alguém lhes descobrisse a suja mancha seria um fatal vexame, salvo apenas pela ruína e desgraça do delator. Um homem que se ri dos outros é certamente um desses magalas da revista, burgessos foliões que não respeitam nada nem ninguém, a despeito da ordem estabelecida. São a vergonha deste país: Nós somos os grandes nabos, os nabos sem rival. Por termos a cabeça dura somos os anos de Portugal. E pergunta-se o leitor: mas quem é o nabo e quem a nabiça afinal?
Quis Deus que os portugueses tivessem de pagar um poucochinho por cada vez que provassem o delicioso segredo do refogado. Pensou Ele, a bem da justiça entre os povos, que a simples fórmula que diviniza os grandes pratos da nossa cozinha merecesse pelo menos duas lágrimas de contrição. E então Deus inventou a cebola: Eu cá sou a cebola, pra bem temperar. Mas também faço arder e às vezes chorar. O que Ele não inventou, de certo, foi uma soberba bichona de cabaret como o Zé Manel Rosado. Vê-lo travestido de abóbora é uma tontura, uma visão inescapável, gingando as partes pudibundas, o ramalhete desgrenhado, e o aviso às mulheres casadas que nunca sabem dos maridos às duas da madrugada: Eu cá sou a abóbora, sou bem redondinha. Com o doce de abóbora você perde a linha!
E chega a Mariema, seguríssima de si. Vestiram-lhe o tesouro minhoto mas ela canta a Madragoa, que apesar da má fama (como Alfama) não se perde a eito em enleios sórdidos nos milheirais. Emancipada, esclarece a vontade das mulheres com língua, sem tento nela, porque é assim que se vingam na vida contra os homens que as desfolham à toa, e ensina-nos: primeiro o galanteio, depois a foda. Sou loura e elegante. Não sou nenhuma badalhoca! Vocês sabem o que é que eu sou? Sou uma bela maçaroca.
A compleição das melancias é fina e exótica, pulsante de riqueza e cheia de sabor. Elegantíssima, a Lia Gama enverga à cabeça a fatia da perdição. É uma lua vermelha – não, da cor da carne, a cor da tentação: Verde e encarnada, eu cá sou demais. Sou a bela melancia, de comer e chorar por mais! A cenoura e o rabanete vêm lado a lado. Que bizarria de sotaques! A Paula Guedes péla-se por tripas: Eu sou a cenoura que faz os olhos bonitos. A Maria de Lima prefere scones na Versailhes. Pois eu cá sou o rabanete, muito bom para os rapazitos. Mas nenhuma, ao longo de vinte e seis episódios, conseguiu deslargar-se do Baião. (Onde andará ele?)
Sustemos a respiração. Desliza toda de branco, deslumbrante como as uvas do vinho consagrado, do vinho profanado, do vapor dos espíritos ardentes. Com o manto alvo ela afasta a bebida torpe. O carrascão dava emprego a um milhão de portugueses, metade que produzia o vinho, metade que tratava dos cirróticos enfermos. Mas não é esse vinho que ela traz. Este é o néctar aprimorado pelos anos e pela arte, filho do homem que fecunda a terra. É o magnífico resplendor que cobre Ana Zanatti, Baco feminino nesta orgia de hortaliças. Mas não se iludam, até os deuses gostam de se consolar na leveza dos venenos humanos: As uvas portuguesas dão sempre que falar. Com tanta uva na cabeça já estou a flipar!
E já só faltam eles. Falham o tempo, correm as escadas, apressados, vermelhos, redondos. São os tomates irmãos, Baião e Monchique, Monchique e Baião. Nas duplas memoráveis, eles ficarão sempre ligados à Grande Noite. Eram certas as gargalhadas do público quando apareciam, sempre sempre. É a rir que se faz o teatro, a revista, um cozido e uma salada. E a rir encerram eles o desfile de hortaliças e todos os brilhantes frutos que desfilaram naquele palco: Não podíamos faltar, jóias de grandes quilates. Aqui estamos meus senhores, nós somos os tomates!

A apoteose. Eis que começa o sonho da abundância, a chuva de couve e repolho que o povo do Variedades se deita a braços para apanhar. É o delírio, maravilhoso delírio daquele hino. De mão na anca, todos cantam: vivam as hortaliças, viva o teatro de revista, vivam os legumes estrangeirados, vivam os nabos mal-amados, viva o Parque Mayer, viva o esparregado à colher, vivam as favas com chouriço, viva o tubérculo metediço, viva o grelo e a chalota, viva a Marina Mota, viva o Vasco Santana, viva a sopa Juliana, viva a nossa agricultura, viva a contra-baixa-cultura, viva o pelintra, a bichona e a galdéria, viva o Portugal do Filipe La Féria!
Por LEITÃO Pedro

 

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Anjinho desamparado

O fenómeno de Júlio Miguel e Lêninha, no panorama de revivalismo musical, foi o principal responsável pelo início da aventura que muitos inexperientes neste mundo alternativo começaram. A verdade é que apesar de muitos conhecerem a dura realidade do rapaz que vê seu pai na prisão e sua falta sente, poucos conhecem a razão pela qual tal coisa se sucede, e ainda são menos os que sabem o que a isto levou na construção da personalidade de Júlio.
Hoje fazemos o papel do assistente social que falhou redondamente para com esta criança de cabelos semelhantes aos do Deus menino deitado, e choraremos, choraremos por termos falhado enquanto sociedade para com esta criança, hoje homem, que merecia um futuro muito melhor.

Todos conhecemos a história: Júlio vive a vida de uma criança abandonada, uma criança que vê a sua figura paterna, cimento de toda a sua construção de valores, presa nas grades da prisão. Como filho cegamente apaixonado por seu pai, Júlio é o único que o compreende, o único que nele acredita e assume os riscos que daí advém, não tem medo de assumir que é e sempre será o filho do "requeluso". 
Mas a história adensa-se aquando a chegada em cenário de sua mãe, mulher que assume ter sido muito amada e mal tratada por este criminoso responsável por ter atrofiado (aquela palavra que fica sempre bonita em qualquer cantiga) a vida desta família. Com a chegada da mãe de Júlio e Leninha, chega também a amante, a responsável pelo fim do casamento e da estabilidade emocional deste pobre jovem, jovem este - e preparem-se corações mais fracos - que nasceu já depois do divórcio. "Vivendo a vida sem brilho, depois nasceu o meu filho, do homem que eu tanto amei. Pelo teu pai fui desprezada, pelo teu pai recompensada, hoje sou uma feliz mãe." assim canta a Mãe de Júlio em agradecimento pelo seu nascimento na cantiga "Mãe Perdoa meu pai". Júlio, que tinha idade para brincar com legos, ouvia com compaixão a história da vida dos seus progenitores, e a empatia é notória no tom da sua voz ao entoar no refrão aquela mais linda palavra que nos pariu a todos. E, iludido pela imagem de família perfeita, pede a seu pai para deixar a outra mulher e voltar para eles. Entre louvores, gemidos e algo parecido com grunhidos, implora a sua mãe que perdoe seu pai, coisa que ela acaba por aceder da forma mais altruísta possível "Para o bem da tua vida , vou perdoar o teu pai".
As lágrimas por esta altura já não se controlam - é impressionante a forma como este pequeno petiz consegue tocar os nossos corações com a bondade que reside no seu. No entanto todos lhe falharam e algo aconteceu para Júlio deixar de prestar atenção às aulas da catequese e se ter rendido aos prazeres mundanos da carne. "Vamos ver à praia as boas pernocas, vamos ver à praia as boas mamocas" canta alegremente, possivelmente enquanto degusta um chocolate Regina. Em "Pernocas e Mamocas" assume-se como uma criança, ainda nova é certo, mas que já tem idade para gostar de ver as raparigas na praia a correr e a nadar. Sabe que ainda é miúdo, mas quando as vê, ele fica graúdo. E assim esta criança começa a percorrer os caminhos sinuosos que levaram à desgraça de seu pai. Filho de peixe sabe nadar, escrevia a assistente social no relatório de Júlio Miguel.
Agora que já sabem a história, choram a tragédia e culpam-se dos males desta sociedade, este é o momento de meter o dedo na ferida: durante todo este tempo, onde raio é que se meteu a Leninha?


domingo, 25 de janeiro de 2015