sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O malhão não é reaccionário


«Ai malhão, malhão / Gritámos “libertação”! / Fecharam-nos logo a boca / Porque éramos a reacção». Quim Barreiros exprimiu assim o lamento pela acusação vil de que a música tradicional foi alvo durante o período revolucionário. Em 1975, em pleno verão quente, lança o tema «O Malhão não é reaccionário», que dá nome a um dos seus mais emblemáticos discos. Na verdade, a canção é um grito de luta contra as tentações totalitaristas de qualquer inclinação – «Fora a foice e o martelo / Não queremos mais ditaduras / Fora a foice e o martelo / Abaixo os oportunistas / E os fascistas do Marcelo». O que Quim pedia, dando voz aos anseios de uma grande maioria que se via como «honesta e trabalhadora», era a normalização institucional do regime e o respeito pelas liberdades e garantias democráticas. E deixava no ar a ameaça de que o mesmo povo «Pouco politiqueiro / Se lhes pisam o rabo / [É] o mais desordeiro».
Se Quim Barreiros se vê nesta altura forçado a defender a canção tradicional, tal resulta da polarização política que ameaçava fazer estalar no país uma guerra civil, em que, esquematicamente, o Norte conservador e o Sul progressista constituiriam as partes beligerantes. O malhão e a chula, típicos do Minho, a região mais reaccionária, feudo da Igreja protegido da ameaça soviética pela acção das milícias do Cónego Melo, eram considerados pelas forças revolucionárias como verdadeiros hinos ao edifício social do antigo regime e instrumentos de jugo e de torpor sobre a mente popular. De certa forma como o fado era para Lisboa, o analgésico do regime contra as agruras da miserável vida das populações urbanas.
No entanto, nem sempre foi assim. Malhão e cantigas de intervenção chegaram a partilhar temas progressistas. Um caso célebre é o de Tino Flores, portuense exilado em Paris por recusar combater na Guerra Colonial, que vai recorrer à música popular para alertar o povo para a sua condição de súbdito da opressão de Salazar. Em França, Tino envolve-se em grupos clandestinos de extrema-esquerda e participa activamente no Maio de 1968. O seus primeiros EPs, gravados por esta altura, têm por títulos “Viva a revolução”, “Organizado o povo é invencível” e “O povo em armas esmagará a burguesia”. Chega a tocar ao lado de José Afonso e José Mário Branco à medida que o seu estatuto artístico se vai consolidando. Era pois na instrumentalização da música popular que Tino se distinguia dos demais cantautores da resistência ao fascismo. Acreditava que a mensagem política seria mais facilmente aceite e mais veementemente instigada a luta se oferecidas num invólucro musical enérgico e alegre. Esta abordagem contrastava nitidamente com a dos seus colegas, cujo estilo musical era dominado pelas «expressões performativas da balada». Assim, Tino Flores acreditava que o malhão e a chula poderiam ser, ao contrário do que se considerou durante e depois do PREC, aliados da revolução:
Acho que nessa época foi giro porque houve essa alteração de as pessoas estarem num espectáculo todos sentadinhos e com aquele ar a ouvir canções do «coitadinho, foi preso…» e outra coisa era, digamos, o apelo «Vamos comê-los!». Os temas eram pensados nesse sentido, mais nada. Era aquilo que eu achava que devia dizer (…) e portanto um gajo tinha de chegar ali e ganhar aquilo assim logo! E isso era a eficácia (…) Uns ficavam chocados e depois alinhavam, mas depois a malta mais jovem chegava cá fora e dizia-me «Foda-se, é isso que um gajo quer ouvir, o que a malta tem de fazer». Era esse o objectivo. [1]
Estes parágrafos servem de introdução a uma nova rubrica que inauguramos n’A Sagrada Dancetaria. Se esperamos ter defendido a música popular das acusações de reaccionarismo, a verdade é que mesmo nos melhores panos caem terríveis nódoas. Na rubrica “O malhão não é reaccionário, ao contrário de…» iremos inventariar e dissertar sobre as nódoas musicais que ao longo dos anos têm apregoado as virtudes do mais arreigado conservadorismo. Percorreremos todos os géneros da música tradicional portuguesa, já que a nefanda estaca onde o fascismo pega de enxertia ganha viço em qualquer formato. Não cumprimos outra missão que não a da crítica instrutiva das cantigas que ouvimos, aflorando todas as vertentes em que tocam: musical, literária, social e política. Porque é nosso dever zelar pela libertação que, depois de 48 anos de mutismo, nos deu os cantares brejeiros e a alegria de dançar sobre as grilhetas das convenções. Também foi pelo Pimba que se fez Abril. 

[1] Tino Flores citado em «Discos na luta: a canção de protesto na produção fonográfica em Portugal nas décadas de 1960 e 1970» (2012) de José Hugo Pires Castro, Lisboa: FCSH, p. 46.

LEITÃO, Pedro

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

O Marajá de Belém


A primeira vez que me cruzei com a figura de Mário Soares vinha ele montado num grande elefante branco ricamente ornamentado, seguido por outros dois elefantes, mais pequenos e não tão ricamente ornamentados, que transportavam, respectivamente, a Primeira-Dama e a Margarida Marante, a jornalista que o acompanhava naquela viagem presidencial. Quando ele aparece no ecrã da televisão, traz um ar majestático, iluminado pelo traje todo branco, pelas lantejoulas que simulam pedras preciosas, pelo turbante laranja e pelo penacho no topo da cabeça, que balança enquanto a cabeça que o enverga atira copiosos beijos e gracejos à plateia. A Margarida vem rabugentíssima. Já não pode com as picadas dos mosquitos, tem nojo da comida e queixa-se dos indígenas, sempre sujos e pegajosos. O Mário desce do elefante, tranquiliza-a, enquanto dos nativos recebe vários colares de flores exóticas. Ao agradecer-lhes de braços abertos, imediatamente se prostram a seus pés, começando a adorá-lo como um ícone. O Marajá de Belém magnanimamente concede-lhes essa permissão e, como prova da sua gratidão, participa com eles numa dança tribal. Pouco depois, a canção transforma-se radicalmente e passamos a ouvir da sua boca o verso “Já fui o conquistador!” popularizado pelos Da Vinci e que resume perfeitamente a tour de visitas presidenciais que marcou esse ano de 1992.  
A rábula do Marajá de Belém é indissociável da figura que tenho de Mário Soares. Interpretado pelo José Manuel Rosado, aka Lydia Barloff, rainha máxima da história do travestismo em Portugal, a caricatura encenada no palco do Variedades pela mão do La Féria é, na sua circunstância, um tributo às conquistas políticas de Soares.
A figura de Soares era dada a este tipo de apropriações cómicas. Republicano até ao tutano, foi o mais monárquico dos presidentes de todas as três repúblicas (isto é, até à chegada de Marcelo, o Segundo). Mas a legitimidade de monarca tinha-a ele conquistado, não lhe fora passada ou herdada. A sua majestade, ao contrário da que dourava os últimos da Casa de Bragança, advinha de uma cruzada de décadas, na sua índole idêntica à da fundação das dinastias reinantes do nosso país. Tampouco se apresentava como um missionário da política, mártir ao serviço da pátria e exemplo de sacrifício. Esse número havia rodado ininterruptamente durante cinco décadas na Emissora Nacional, cinquenta longos anos em que Soares foi, efectivamente, a voz e cara de uma missão política que lhe exigiu enormes sacrifícios ao serviço da pátria. Mas, ao contrário dos seus antecessores, Soares não quis adornar a sua figura política com um manto (tão justo, no seu caso) sofrido e tolhido pelo dever. Sem apagar a memória, quis que o país desentorpecesse os membros e voltasse a gostar de viver; e voltasse a gostar de rir. Consigo ou de si, não importava, desde que risse com gosto.
A Revista é um terreno ingrato para um revolucionário, já que vive de um catálogo prenho de referências ao antigo regime. São as marchas populares, inventadas pelo Ferro para adocicar a propaganda da ditadura. São os ícones da miséria, dos bairros decrépitos ao arraial de profissões típicas que mascaram a pobreza. É o panteão de personagens que viveram em colaboração com o regime e que com ele, e por ele, se fizeram grandes. Mas era também na Revista que se beliscava a moral e os bons costumes; que se mandava, com jeitinho, os poderosos à merda; e onde se apresentavam novas ladainhas brejeiras para contornar o lápis azul, deixando o censor a clamar “ó pistari, ó pistaró” pela corrupção moral da populaça.
A brilhante síntese soarista é retratada na figura do Soares caricaturado em Marajá de Belém, e o seu programa ideológico não podia ser tornado mais clarividente por outra forma do que através de um número de Revista. Aproveitar as coisas boas da vida sem mortificação. Ser vaidoso no homem e no trabalho que se constrói. Aceitar a imperfeição própria, a imperfeição dos outros, a imperfeição moral (palavra odiosa) do povo, e fazer pouco de todas as imperfeições para as corrigir sem recorrer ao cilício. Romper com o mal do passado sem esquecer que no passado houve gente que, ao contrário dele, não lutou, que colaborou, que viveu como pôde e como sabia melhor. Soares quis que esses também tivessem direito a rir, quis que a Revolução fosse feita para que os que não lutaram também pudessem – sozinhos, com ele ou dele  rir mais francamente, mais desbragadamente, mais livremente.
Em última análise, devemos ao Marajá de Belém a possibilidade de apreciarmos todas as coisinhas boas que trazemos para este blogue. Sem ele não haveria a subtileza perversa das letras do Pimba. Só haveria enjoativas marchas de arco e balão ou os luminosos mas distantes amanhãs das cantigas de intervenção. Não compraríamos panelas de pressão sem a adesão à CEE. Não recorreríamos à comunhão de bens sem um Estado laico. Não exploraríamos as nossas taras e manias, ou porque ainda estaríamos agrilhoados ao tríptico castrador de outrora, ou porque nos dedicaríamos compenetradamente a desenhar um Homem Novo expurgado de tais defeitos. Fazendo eco do rol de obituários que inundam os jornais por estes dias, diríamos que Soares é o pai da democracia e de todas as coisas que enumerámos. Mas adivinho que o Marajá dissesse (como disse, de facto, numa das muitas vezes em que foi interpretado por Mário Soares), citando outra grande estrela da Revista: «Vá chamar pai a outro».

LEITÃO, Pedro

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Cançoneta da Semana


  1. Reis dos cantares alentejanos progressivos, os PSST TO MAXOSTE ambicionaram unir os jovens da terra com as tradições musicais locais e percebendo que o sucesso estava à vista gravaram "Stress Alentejano", de onde extraímos a faixa que hoje vamos ouvir. Convidaram um grupo de catraios da terra, e numa grande homenagem aos tempos dourados de Camilo de Oliveira fazem uma desgarrada infantil onde alteram o nome de José Sócrates para Socrátes, jogada rimática ousada, mas bem sucedida ao encontrar par com "empate". A garotada discute o estado da Nação e isso só nos pode tocar no coração. Ouçamos então: