Maria é uma mulher emancipada, obstinada, decidida a fazer da vida o
que lhe aprouver, Maria inveja aos homens a ampla prerrogativa concedida pelo
costume, ressente-lhes a esforçada via que a obrigam – ilusão de igualdade, sina
de dificuldade (por necessidade) – Maria é uma afronta à ordem e à compostura,
como os artistas em ditadura ou as meretrizes de morada estabelecida, e por
isso o povo lhe deu o título e a sorte madrasta: Maria Destemida, mulher da
vida, rainha da estrada.
Maria leva os dias em perpétua viagem pelos itinerários. Faz a vida na
estrada. Não ataca nas curvas nem palmilha as esquinas buscando sustento. A
comparação é fácil e grosseira. Maria tem um trabalho de homem e ninguém lhe perdoa
a desfaçatez. Mas ela continua, impassível. Agarra o volante como quem segura o
leme, e segue em frente, no meio de toda a gente, sem medo de nada.
Os comentários, piropos e graçolas contorna-os como os obstáculos no
caminho, no seu caminho – a estrada. Foi
nela que Maria traçou o destino porque cedo deitou mãos à vida. Fez da vontade
os seus trilhos, afoita e desgraçada, mulher destemida, mulher ingrata. Maria
pagará pela ousadia.
Leonel Nunes compôs-lhe uma canção. Ele é um homem do seu tempo,
versejador da condição humana, atento ao Ser e à sua circunstância. No poema,
Leonel tenta uma árdua conciliação entre as egrégias leis da tradição e as aspirações
emancipadoras que mulheres como Maria clamam. A harmonia é possível, Leonel
sabe-o. Mas entrava-a a arrogância, quer do povo, quando maldiz Maria, quer da
mulher, quando recusa toda e qualquer a ajuda. Leonel recorre então ao mais
subtil ardil para enjeitar o caminho da concórdia: a ironia.
O autor louva a ousadia de Maria ao cantá-la nas palavras jocosas do
povo, quando este a acusa de vadiagem. Traça os preceitos, as comparações, e é pela
sujeição ao ridículo, à tacanhez dos seus acusadores, que Maria é elevada como
força empreendedora entre o marasmo de ignorância que a cerca. Por outro lado, subjuga
Maria à sua natural (porque natural é toda a carne) condição de mulher. Diríamos,
de mulher errante, de ovelha extraviada do rebanho. Inoperante na sua solitude,
face à impotência para mudar um pneu furado e assim seguir a sua marcha, Leonel
não se assume diferente dos outros homens pecadores. Também ele se ri de Maria
– também ele apedrejaria Madalena, ainda que para a salvar da multidão. Mas ao
compreender-lhe a humanidade, ao escutar nela a solidão, é capaz de estender
solicitamente a mão, redimindo em Maria a arrogância que a fere fatalmente. No
final da troca do pneu furado por um novo, perfeito, quem sabe se os caminhos
solitários da noite não serão já trilhados por um volante a quatro mãos.
Moral da história. Não a sabemos. Talvez a recusa da moral, a sua
arrogância e severidade para com a natural ignorância do homem. Mas também a
arrogância dele (dela) ao condenar toda a ajuda, a arrepio da douta e boa
moral. Nunca saberemos ao certo. Mas algo é incontornável, implacável, claro e
sempre presente: a ironia do nosso destino. Nesta música há um elemento que
surge como o timbre da crua constatação do seu inexorável sentido. Leonel canta
no refrão: «Ficaste empanada, furada na estrada, e agora…». As reticências
preparam a punchline: «quem ri --- sou eu!». Não por acaso, ao pronunciar o
verbo “rir” cai num relâmpago o som de um prato de bateria que inflama o verso
como um golpe de adaga e é na espinha que sentimos a mordidela, a ácida mas
libertadora mordidela da ironia. O seu som ressoa por todo o refrão, e quando
termina a canção ainda persiste no nosso pensamento, como o choque de
descobrir, pelo golpe de um prato de bateria, a derradeira comédia de toda a
existência. É esta a beleza e a mestria de Leonel Nunes.
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