Estamos a poucas semanas de conhecer o desfecho da
investigação da Operação Marquês, que deverá levar o Ministério Público a
acusar José Sócrates do envolvimento em crimes do mais alto coturno. Hoje, na
rubrica O malhão não é reaccionário…,
regressamos a Março de 2006, altura em que José Sócrates terminava o seu
primeiro ano de mandato como primeiro-ministro do XVII Governo Constitucional. Depois
do descalabro político que a fuga de Durão Barroso para Bruxelas provocou na Direita portuguesa, agudizada subsequentemente pela trágica peça de vaudeville
“O Menino Guerreiro”, protagonizada por Pedro Santana Lopes, José Sócrates
conquistava a maioria absoluta no Parlamento e tomava firmemente as rédeas do
país, inaugurando uma cavalgada heróica que culminaria na conquista do prémio “Sexy
Platina” em 2009, atribuída pelo Correio da Manhã ao homem mais sensual de Portugal. Os leitores do diário de maior tiragem do país davam a conhecer o
macho lusitano que mais os fazia suspirar libidinosamente nas horas solitárias
da noite.
Não obstante, José Sócrates foi por muitos considerado o
primeiro-ministro mais autoritário até então. A forma truculenta com lidava com
as críticas, a relação de subserviência que exigia da comunicação social, a
tendência para o controlo totalitário do aparelho de poder, a índole
revanchista das suas declarações públicas, entre outros tiques reveladores de
pouca candura democrática, contribuíram para o epíteto. Paralelamente, e à
semelhança dos seus antecessores, foi um defensor convicto do investimento em
grandes obras públicas. O novo aeroporto da Ota, o comboio de alta velocidade e
a terceira travessia sobre o Tejo formavam a receita que produziria o "inevitável" progresso
económico do país. Esperava-se uma enxurrada de fundos públicos que, à
semelhança do que acontecera com projectos como a Expo 98, o Euro 2004 e a Casa da Música no Porto,
vertesse em jorros abundantes e de «mão beijada / [para] quem já ganha milhões»,
enquanto pelo país "real" se contavam tantos «milhões sem ganhar nada». A denúncia era feita, à altura, por Nel Monteiro no seu tema de 2006 Puta Vida Merda Cagalhões (ou PVMC, um acrónimo neutro para quem tolera mal o
vernáculo).
Este álbum, eloquente e vertiginoso, esconde algumas pérolas
de um género que podemos apelidar de “pimba de intervenção” (no caso, com
evidentes guinadas à Direita). Em Nel Monteiro temos o Beppe Grillo da música
popular, um Márinho e Pinto anterior a Márinho e Pinto; temos, enfim, um pioneiro da musical-reacção. As suas canções mais políticas facilmente seriam adaptadas (houvesse imaginação e vontade) como hinos de qualquer movimento populista. Quem olhasse para Justiça Popular, tema seu de 2003, adivinharia já a semente de uma tendência
política que cresceria ao longo dos quinze anos seguintes, em que veríamos as sinistras franjas do espectro político converterem-se em galvanizadores da indignação dos
descamisados do novo século e, finalmente, nos seus legítimos representantes, eleitos através de sufrágios livres: «Para onde vão os milhões / Que a Portugal vêm parar? /
Que um operário não vê / Mas que os tem de pagar. / Enquanto os operários /
Melhor vida não tiverem / A merda que os ricos cagam / Que a limpem se
quiserem». Como se vê, a escatologia anda de mão-dada com o discurso populista,
algo frequentemente apontado a quem os profere (aos discursos, não à
escatologia), sobretudo em tom depreciativo.
A par deste tópico fedorento, o descrédito pelo sistema democrático é outra
das temáticas recorrentes. A canção Já não cola (2005), lançada a tempo das
legislativas que resultaram na eleição de José Sócrates, apregoa uma clara
desistência nas virtudes do sistema democrático, o grito de frustração do povo que se vê traído por aqueles que o deviam representar, e que vem cristalizada no seguinte mote, glosado ao
longo de todo o tema: «Fazem promessas para o voto cobiçar / É um vale tudo
para subir ao poleiro». Muito se tem escrito sobre a percepção generalizada dos políticos como uma classe corrupta, interessada apenas na perpetuação dos “empregos”
(uma queixa que já em oitocentos era apontada ao funcionalismo público
português) e que, a par de uma proverbial inoperância e incompetência na
resolução dos problemas do país, justificou a entrada em cena de regimes
mais musculados ao longo de toda a história contemporânea. Igual proposta parece ter o autor para os
problemas da nossa infame III República: «Que se acabe essa guerra de papel /
Tudo mentira que ao longe bem se topa / O que é preciso é apostar na mudança /
Para não sermos a vergonha da Europa». E, no refrão, de novo o apelo à salvação
da honra da pátria. «É uma guerra de mata e esfola / Mas que já não cola, mas
que já não cola. / Chegou a hora de erguer a moral / Vai haver mudança, força Portugal!».
Vivesse Nel Monteiro na década de vinte do século passado e rapidamente as suas
cantigas seriam arrebanhadas pelas Revistas populares que premeditaram a chegada
da Ditadura Militar.
Todavia, sendo Nel Monteiro um homem do seu tempo, e sofrendo com o vexame
nacional que diariamente desfila pelos corredores atapetados da Assembleia da República, o artista opta por recordar uma época de paz social e de felicidade, de agruras, é certo, mas, e acima de tudo, de
pessoas humildes e honestas. «Tive de apertar o cinto / Nos tempos de Salazar /
Até na teta da vaca / Ao curral ia mamar. / Às vezes tenho saudades / Desses
tempos que lá vão / O melhor que sei da vida / devo a essa escravidão». Cá
está, a construção de um passado luminoso e de cândida miséria, onde, nas mais
duras privações, o povo descobre o encanto dos pequenos prazeres da vida. Tempo de
homens rijos e da primordial ligação à terra. Das vontades simples do corpo. O
tempo da inocência e da mais pura beleza.
É difícil encontrar na música pimba referências ao lúrido professor de Coimbra que governou o país com mão de ferro durante quarenta anos. Ora, em Mama na Vaca de Nel Monteiro, incluída no já citado disco PMVC,
a referência é dupla: cantado na ode pastoral que é a estrofe citada; e como
invocação da autoridade do sábio, da bênção do pai protector, enfim, como proposta programática
para o regresso a um passado mais feliz: «Nos tempos de Salazar / O pobre
ganhava mal / Mas sempre ainda tinha / Umas vacas no curral. / Quem me dera
encontrar / Esse velho ditador / E dizer-lhe que por cá / Vamos de mal a pior».
Não bastava ao autor dourar a memória de uma realidade que, de resto, só existe
como refúgio nostálgico, artifício típico do sentimentalismo “reaça”. Não. Nel
Monteiro propõe um encontro com o «velho ditador», oferecendo-se para carregar ao lombo a culpa de uma sociedade impenitente. Por ela, contra a vontade dela, roga-lhe misericórdia, tentando o regresso àquele saudoso lar paterno que todo um rebanho tresmalhado renegou em favor de uma aventura irresponsável e estéril – a democracia.
Uma última nota ainda a propósito da carga doutrinária que exala
de cada verso. Nel
Monteiro sente pena por quem, ao contrário dele, não teve o privilégio
de saborear as maravilhas naturais directamente da fonte: «Quem nunca mamou da
vaca / Não sabe o que é bom.» E critica quem, armado em moderno, não passa
afinal de um pacóvio ignorante: «É melhor mamar na vaca / Que mamar no
biberão.» A chave está na última palavra, e na formulação usada. O autor,
imbuído de fervor patriótico, rejeita o galicismo (e mais correcto) biberon, substituindo-o pela terminação lusa –ão.
Não o aflige que, ao optar por esta terminação, está a sacrificar a rima. E não
uma rima qualquer, mas a do próprio refrão! A rima que, na música pimba, é a pulsação do
verso. Nel Monteiro não tem escrúpulos. Não lhe bastava o chorrilho de pestilentas
alusões da cantiga. Era-lhe necessário perpetrar o crime capital que perde o artista: o de
sacrificar a sua arte por essa mais devassa e fria das galdérias que é a
política.
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