«Ai malhão, malhão / Gritámos “libertação”! / Fecharam-nos
logo a boca / Porque éramos a reacção». Quim Barreiros exprimiu assim o lamento
pela acusação vil de que a música tradicional foi alvo durante o período
revolucionário. Em 1975, em pleno verão quente, lança o tema «O Malhão não é reaccionário»,
que dá nome a um dos seus mais emblemáticos discos. Na verdade, a canção é um
grito de luta contra as tentações totalitaristas de qualquer inclinação – «Fora
a foice e o martelo / Não queremos mais ditaduras / Fora a foice e o martelo / Abaixo
os oportunistas / E os fascistas do Marcelo». O que Quim pedia, dando voz aos
anseios de uma grande maioria que se via como «honesta e trabalhadora», era a
normalização institucional do regime e o respeito pelas liberdades e garantias
democráticas. E deixava no ar a ameaça de que o mesmo povo «Pouco politiqueiro
/ Se lhes pisam o rabo / [É] o mais desordeiro».
Se Quim Barreiros se vê nesta altura forçado a defender a
canção tradicional, tal resulta da polarização política que ameaçava fazer
estalar no país uma guerra civil, em que, esquematicamente, o Norte conservador
e o Sul progressista constituiriam as partes beligerantes. O malhão e a chula,
típicos do Minho, a região mais reaccionária, feudo da Igreja protegido da
ameaça soviética pela acção das milícias do Cónego Melo, eram considerados
pelas forças revolucionárias como verdadeiros hinos ao edifício social do
antigo regime e instrumentos de jugo e de torpor sobre a mente popular. De
certa forma como o fado era para Lisboa, o analgésico do regime contra as
agruras da miserável vida das populações urbanas.
No entanto, nem sempre foi assim. Malhão e cantigas de
intervenção chegaram a partilhar temas progressistas. Um caso célebre é o de
Tino Flores, portuense exilado em Paris por recusar combater na Guerra
Colonial, que vai recorrer à música popular para alertar o povo para a sua
condição de súbdito da opressão de Salazar. Em França, Tino envolve-se em
grupos clandestinos de extrema-esquerda e participa activamente no Maio de
1968. O seus primeiros EPs, gravados por esta altura, têm por títulos “Viva a
revolução”, “Organizado o povo é invencível” e “O povo em armas esmagará a
burguesia”. Chega a tocar ao lado de José Afonso e José Mário Branco à medida
que o seu estatuto artístico se vai consolidando. Era pois na
instrumentalização da música popular que Tino se distinguia dos demais cantautores
da resistência ao fascismo. Acreditava que a mensagem política seria mais
facilmente aceite e mais veementemente instigada a luta se oferecidas num invólucro
musical enérgico e alegre. Esta abordagem contrastava nitidamente com a dos
seus colegas, cujo estilo musical era dominado pelas «expressões performativas
da balada». Assim, Tino Flores acreditava que o malhão e a chula poderiam ser,
ao contrário do que se considerou durante e depois do PREC, aliados da
revolução:
Acho que nessa época foi giro porque houve essa alteração
de as pessoas estarem num espectáculo todos sentadinhos e com aquele ar a ouvir
canções do «coitadinho, foi preso…» e outra coisa era, digamos, o apelo «Vamos
comê-los!». Os temas eram pensados nesse sentido, mais nada. Era aquilo que eu
achava que devia dizer (…) e portanto um gajo tinha de chegar ali e ganhar
aquilo assim logo! E isso era a eficácia (…) Uns ficavam chocados e depois
alinhavam, mas depois a malta mais jovem chegava cá fora e dizia-me «Foda-se, é
isso que um gajo quer ouvir, o que a malta tem de fazer». Era esse o
objectivo. [1]
Estes parágrafos servem de introdução a uma nova rubrica que
inauguramos n’A Sagrada Dancetaria. Se esperamos ter defendido a música
popular das acusações de reaccionarismo, a verdade é que mesmo nos melhores
panos caem terríveis nódoas. Na rubrica “O malhão não é reaccionário, ao
contrário de…» iremos inventariar e dissertar sobre as nódoas musicais que ao
longo dos anos têm apregoado as virtudes do mais arreigado conservadorismo.
Percorreremos todos os géneros da música tradicional portuguesa, já que a nefanda
estaca onde o fascismo pega de enxertia ganha viço em qualquer formato. Não
cumprimos outra missão que não a da crítica instrutiva das cantigas que
ouvimos, aflorando todas as vertentes em que tocam: musical, literária, social
e política. Porque é nosso dever zelar pela libertação que, depois de 48 anos
de mutismo, nos deu os cantares brejeiros e a alegria de dançar sobre as
grilhetas das convenções. Também foi pelo Pimba que se fez Abril.
[1] Tino Flores citado em «Discos na luta: a canção de protesto na produção fonográfica em Portugal nas décadas de 1960 e 1970» (2012) de José Hugo Pires Castro, Lisboa: FCSH, p. 46.
LEITÃO, Pedro
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